23 de abr. de 2008

O MUNDO DOS BENS

"O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo", por Débora Leitão (*) 
 
Dados do livro resenhado:
Título da obra: O Mundo dos Bens: para uma antropologia do consumo
Nome dos autores: Mary Douglas e Baron Isherwood
Editora: UFRJ, 2004.
Número de páginas: 304
 
Por que as pessoas querem bens?
 
No final da década de setenta, Mary Douglas e Baron Isherwood publicam, na Inglaterra, "O Mundo dos Bens". Propondo novas lentes para ver as relações de consumo (relações de sujeitos com os objetos, e sobretudo de sujeitos entre si), dão direções precisas para os estudos nessa área. A publicação estabelece a pedra fundamental para o desenvolvimento, nas décadas seguintes, de uma linhagem de pensadores sociais que vão compreender o consumo como fenômeno chave para a análise de relações sociais e sistemas simbólicos.
 
O livro surge como uma proposta e como uma dupla crítica: aos postulados da economia neo-clássica, centrados no utilitarismo, racionalidade e maximização de ganhos, e as teorias de emulação estabelecidas a partir de Veblen. O caráter meramente utilitário do consumo já havia sido de alguma forma posto a prova dentro da teoria econômica. Com Veblen o consumo deixa de representar a simples satisfação racional de necessidades práticas e orgânicas. Ele permanece, contudo, sendo visto sob uma ótica de base moralizante, que relaciona o mundo das coisas materiais à futilidade. O consumidor já havia saído do domínio da necessidade, mas, pendendo para o lado oposto, torna-se quase irracional no jogo da emulação e da escalada pelo status, consumindo de acordo com motivações que dizem respeito exclusivamente a imitar ou copiar gostos das classes mais altas.
 
Através de sua crítica, Mary Douglas e Baron Isherwood apontam, sobretudo, para as dimensões culturais e simbólicas do consumo, e para a diversidade de motivações no que concerne o ato de consumir. Escrito por uma antropóloga e por um economista, o livro dá conta de uma ampla revisão das teorias econômicas sobre o consumo – trazendo seus principais argumentos e de seus críticos. Além disso, estabelece comparações ricas entre sociedades, citando etnografias clássicas que informam sobre relações de troca e consumo em diferentes culturas.
 
Para Douglas e Isherwood os bens de consumo são, em última instância, comunicadores de categorias culturais e valores sociais. Eles tornam tangíveis categorias da cultura, são necessários para tornar visíveis e estáveis tais categorias. As escolhas de consumo refletem, segundo os autores, julgamentos morais e valorativos culturalmente dados: carregam significados sociais de grande importância, dizendo algo sobre o sujeito, sua família, sua cidade, sua rede de relações. O ato de consumir seria um processo no qual todas as categorias sociais estariam sendo continuamente definidas, afirmadas ou redefinidas.
 
Os bens são, em qualquer sociedade, obviamente necessários para subsistência: comida, abrigo e outras funções utilitárias. Mas, convém o antropólogo aproximar o olhar, e perceber sua outra função. Eles também produzem e ajudam a manter relações sociais. Têm um duplo papel, provendo subsistência e desenhando as linhas das relações entre indivíduos e grupos. Para compreender as escolhas de consumo seria necessário, portanto, analisar os processos sociais como um todo, não apenas o ato de consumir isoladamente.
 
Ir além do uso prático dos bens seria, para Douglas e Isherwood, perceber as escolhas como formas de classificação, e o consumo como um ato ritual. Se, evocando Lévi-Strauss, as classificações do bom para comer diziam sobre o bom para pensar, exercício semelhante poderia ser feito com relação ao consumo. Os objetos podem ser bons para comer, vestir e abrigar, mas além de sua utilidade é preciso manter a idéia que são bons para pensar. As funções do consumo seriam, principalmente, as de classificar, selecionar e dar sentido ao mundo.
 
A questão proposta pelos autores, que de alguma forma norteia o livro, é "Por que as pessoas querem bens?". Também estão preocupados, todavia, em discutir as idéias e teorias existentes – clássicas e contemporâneas – sobre as razões do não-consumo: por que elas não compram? por que deixam de consumir? e por que poupam? Não consumir poderia, por exemplo, ser por vezes percebido como não compartilhar. Os rituais de consumo seriam rituais de estabelecimento e manutenção de relações, participar ou não deles diz respeito a estar incluído em maior ou menor grau em um conjunto de relações sociais.
 
Douglas e Isherwood escrevem, em certa medida, uma resposta consistente e inovadora ao discurso de muitos críticos da sociedade de consumo, que relaciona o ato de consumir com alienação, estupidez, insensibilidade à miséria ou futilidade. A proposta de "O Mundo dos Bens" é a compreensão livre de preconceitos do fenômeno das relações de consumo na contemporaneidade. Relações de consumo são, antes de tudo, relações sociais, e, portanto, um objeto de estudo legítimo e rico para a Antropologia e as Ciências Sociais em geral.
 
O Mundo dos Bens está sendo publicado no Brasil praticamente vinte e cinco anos depois de sua primeira edição. Não há dúvidas de que esse fuso horário de mais de duas décadas impressiona. Traz, quem sabe, a pergunta: não estará fora de lugar? Se no final dos anos setenta sua publicação foi fundamental para o estabelecimento de novas possibilidades para o estudo do consumo na Grã-Bretanha, tantos anos depois, no Brasil, não deixa de ser obra fundadora. Sua publicação por aqui é uma das pedras fundamentais de um momento muito específico do campo, em que os estudos antropológicos sobre consumo estão se firmando e ganhando visibilidade no país. Não é sem razão que coincide com a tradução e publicação no Brasil de obras de outros importantes autores da área, como Daniel Miller (2002), Don Slater (2001), Grant McCracken (2003) e Colin Campbell (200?). A obra de Mary Douglas e Baron Isherwood está, por tanto, absolutamente sintonizada com o contexto que a recebe, colaborando para o crescimento desse campo de conhecimento e abrindo espaço para uma "Antropologia do Consumo" no país.
 
(*) Débora Leitão é doutoranda do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da UFRGS.

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